Gustavo & Thais

sexta-feira, dezembro 19, 2003
 
Jorge observava a fumaça do cigarro esvair-se de sua boca e adentrar na atmosfera. Era relaxante e tão bom quanto o próprio ato de fumar observar as transfigurações da fumaça que lhe saía dos pulmões após um dia inteiro de trabalho. Nas primeiras vezes que se dera ao raro prazer sentiu sua pressão sangüínea baixar e um torpor parecido com um choque elétrico, ficava meio grogue e aceso. Agora imaginava no ar a fumaça entorpecendo seus alvéolos e penetrando em suas artérias. Aproveitava que Mariana ainda levaria mais uma hora para chegar do escritório e ficava anoitecendo na janela junto com a rua e aproveitando a cor do baseado, com Mariana não haveria muitos silêncios, ela gostava de ver televisão e de conversar bastante.

Gostaria de ter alma de escritor, Jorge pensava junto com seus alvéolos. Transformaria essa fumaça em letras e emocionaria algumas das pessoas que andavam na rua abaixo, quem sabe até a Mariana veria menos televisão e leria suas coisas em silêncio. Certamente seria menos idiota e teria mais trocados na carteira para melhores baseados. A idéia de escrever o enchia de vida naquela janela, havia mesmo deixado para a camada de Ozônio o balé que a fumaça deslizava à sua frente, tragava o cigarrilho e sentia vontade de escrever.

Não havia de ser complicado por demais contar histórias, todo mundo as têm aos montes prontinhas para ganharem vida, narração e personagens. Com as palavras corretas e bem grafadas, suas histórias poderiam ganhar o mundo e de certa forma, ele ganharia o mundo. O mundo, ele pensava em voz baixa, posso ganhar o mundo apenas escrevendo. Tragou e fechou os olhos, precisava de palavras naquele instante, das palavras poderia construir as imagens e mesmo a onda que o cigarro lhe marejava. Poderia começar por aquela cena mesmo, um homem aguardando a sua mulher retornar a seus braços para o amor e suas pequenas misérias, beijos e confissões e silêncios que se morfariam em metáforas e verbos e aliterações. Mariana seria Margarida pois era assim que a amava, como um homem poderia amar uma flor que brilhava solene em meio à lama do cotidiano.

O trinco da porta anunciou Mariana e a música televisiva que preencheu a sala a confirmou. Jogou fora o baseado, já o havia terminado de qualquer modo. Beijou sua pequena margarida na nuca e começou a escrever seu primeiro capítulo. Um homem cuidando para que o mundo não esmagasse aquele ser que o enchia de vida.

segunda-feira, novembro 24, 2003
 
Ele não poderia dizer que seus pés flutuavam entre os reles mortais por quem gingava por conta da bebida, da luz ambiente ou se teria sido aquele beijo. Um beijo, duas línguas, quatro lábios, mais de cinqüenta dentes e quase trezentos batimentos cardíacos por minuto; um beijo é capaz de nos tirar do chão, que queime minha língua a ferro em brasa aquele que discordar.

Um beijo anônomo e sem rosto, como se o beijo fosse alguém que estivesse ali presente, deixando o tempo passar para abduzí-lo outra vez quando ele já estivesse com os pés mais firmes no chão. Em seus ouvidos a música eletrônica soava como a melhor traviata de Beethoven, mesmo que nem ele e nem eu jamais pudéssemos lhe explicar o que seria uma traviata e muito menos se o pobre Beethoven chegou a compor alguma em vida. Ele só sabia que o compositor havia ficado surdo perto de sua morte e compunha de ouvido, o que não deixa de ser uma ironia.

Tropeçava seus passos em direção a outro beijo com os olhos enxergando o caminho quando a luz e a fumaça e o som deixavam, sua cara sonsa e meio bovina não prestava atenção em nada, ele ainda estava dentro da boca que o roubara do chão. Nessa toada, pisava em ovos, amassava cometas e chutava estrelas no caminho. Um homem perdido, ele havia se tornado e não procurava uma saída de volta ao seu caminho de bem.

Com aquele beijo em si, foi capaz de conquistar o mundo e pagar todas as suas dívidas. Escreveu sonetos e catalogou orquídeas pelo cheiro. Foi embora para a Passárgada jogar xadrez com o rei, muito amigo seu e mesmo chegou a confessar que não precisava de mais nada, pois era um homem que podia contar com um beijo em cada esquina.

Quando o beijo virou névoa, foi difícil explicar a ele que havia mais coisas na vida do que duas línguas, quatro lábios, mais de cinqüenta dentes e quase trezentos batimentos cardíacos por minuto. Ele secou, e secou, e secou, como a audição de Beethoven num fim de festa. E longe da Passárgada.


sexta-feira, novembro 21, 2003
 
Um minutinho de (contra)cultura!

Durante 1967 os americanos consumiram cerca de 360.000 kg de barbitúricos - e mais ou menos dez bilhões de de comprimidos de anfetaminas - para contrabalnçar os barbitúricos.

Que americanos são esses? Freaks, hippies, grateful deads? Não, "o maior grupo dessa população cada vez mais dependente das drogas era formado não por adolescentes rebeldes, mas por mulheres idosas que necessitavam de auxílio para dormir e acalmar os nervos."
(Dica para vocês: tem um filme chamado "Réquiem Para Um Sonho" na locadora mais próxima de sua casa)

Francamente, deixem a Luana apertar e acender o dela em paz. Se ela aparecese no programa do Jô com uma camiseta decotada onde se lesse "Experimenta! Experimenta! Experimenta!" com sotaque paulistano e tudo mais, ela ganharia dinheiro. Como deu uma entrevista para um jornal vestindo um brinco ornamentado em forma de folha de cânhamo, ganhou voz de prisão.

Fonte para os americanos doidões: ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1972, p. 174.

terça-feira, novembro 18, 2003
 
Abre parênteses.

Para se falar do rock, mesmo que o foco seja o seu espírito contestador, há que se considerar o fato de que ele sempre esteve ligado à indústria fonográfica. Elvis, Beatles, Dylan, Gil e Clash não foram apenas artistas capazes de criar músicas notórias, eles foram também produtos que geraram retornos satisfatórios para as suas gravadoras e empresários. A questão de que talvez seja o rock uma contracultura de massa passa por esta constatação - os artistas que mais impacto tiveram sobre a sociedade com a sua música e suas atitudes também foram os artistas que melhor retornaram os investimentos feitos pela indústria cultural no desenvolvimento de um produto (o rock), pois ela, a indústria, é o canal de comunicação entre mensagem e receptor.

(...)

Uma das características da personalidade jovem do rock é a sua inserção no universo da cultura pop. É daí que temos o seu dinamismo, pois, enquanto produto cultural ele precisou de algum grau de adaptação às diversas gerações de consumidores e seus diferentes desejos. A diferença entre o franzino Buddy Holly e o satânico Marilyn Manson é menos musical do que comercial. A música de ambos deriva da mesma fonte; o rock e suas raízes no blues negro. Mesmo a mensagem de suas músicas, ainda que num primeiro momento sejamos levados a pensar o contrário, são semelhantes pois são dirigidas a um público bastante próximo entre si, a classe média jovem interessada em música. Do rapazola que pedia o carro emprestado ao pai para levar a garota que sentava do outro lado da sala de aula ao cinema até o jovem que espera noite adentro conectado à Internet que a menina com quem trocou e-mails numa sala de bate-papo virtual reapareça na tela digital o tempo só veio a acrescentar aos últimos mais informação, tatuagens e piercings. A diferenciação entre os artistas nasce em duas fontes principais: a maneira como o artista irá interpretar o rock (a sua subjetividade) e a forma como ele irá transformar sua interpretação em música (a sua objetividade). Portanto, ainda que Buddy Holly possa ter tido um gosto musical bastante semelhante ao de Marilyn Manson, a catálise que ambos fizeram para transformar suas subjetividades em objetividades foi certamente diferente, no que resultou em músicas que atingiram públicos semelhantes de formas dissonantes. A indústria cultural se interessa pela objetividade dos músicos e busca adaptá-la dentro de seus preceitos para alcançar o seu objetivo: máximo consumo.

Caralho, a minha monografia está ficando um tesão.

Fecha parênteses.


sábado, novembro 08, 2003
 
A última vez eu havia acordado e fui escovar os dentes. Ela dormia, devia ser sábado ou domingo, daqueles bem clichês com o sol azul e a tevê ligada na sala passando futebol. Ela dormia, eu brincava com a escova fazendo espuma na minha boca enquanto o Ronaldinho se livrava de dois zagueiros mas perdia a bola para o goleiro. A torcida suspirava coletivamente.
De volta à pia, cuspindo a espuma e fazendo um bochecho, pensava em duas coisas básicas: se deixava a barba continuar crescendo e o que aquela mulher ainda fazia dormindo na minha cama? Dez da manhã, eu de dentes limpos, o Ronaldinho já havia feito dois gols e ela dormindo. Na minha cama. A minha barba eu resolveria sem maiores problemas, afinal, ela era bem crescidinha mesmo e já havia se decidido na vida. Mas aquela mulher, ela precisava acordar pelo menos.

Espiei pela porta do quarto, ela ainda parecia bonita, na verdade, ela era ainda mais bonita enquanto dormia, mas eu nunca confessava esse pecado capital porque a gente se divertia bem mais quando acordados. Quando uma mulher ainda é bonita após passar dois anos dormindo na sua cama, dá o que pensar. Você se torna cúmplice de si mesmo, cúmplice do corpo dela, cúmplice. Quando ela acordasse, eu teria inventado tramóias que o sono dela não poderia perceber. E Deus sabia que eu até havia infringido dogmas de Sua santa madre igreja por culpa do sono dela.

A questão é que ela era bonita, por isso eu não me permitia despejá-la de minha cama. Pouco me importava a opinião dela sobre os filófosos realistas franceses, sobre Bob Dylan ou sobre a conclusão de Matrix, quando ela estava em minha cama ela era apenas bonita. Nem uma mulher bonita, mas apenas bonita, intransitiva e bonita. Mas aquela beleza toda estava me deixando inquieto aquela manhã. E eu não sabia onde havia deixado o vinil do Hendrix que servia para amenizar meus desassossegos matinais.

Comecei a tentar ver o que sustentava aquela beleza ninando na minha cama pela manhã. Raramente tínhamos assuntos para conversar que não fossem frivolidades diárias, descarregos de trabalho ou rinhas de relacionamento. Ela detestava minha gravata azul marinho, eu sempre sabia quando ela precisava convencer o chefe a partir do decote da blusa. O sexo era sexo, como o sexo de qualquer casal, cada um sabe trepar à sua maneira. De vez em quando, um de nós surpreendia o outro com novos truques, palmadas, beliscões, xingos, rosas e trufas. Sabia que ela usava um colarzinho com um crucifixo, mas nunca a vira rezando ou usando o santo nome em vão.

Que diabos eu havia visto naquele corpo bonito que jazia em minha cama havia já um par de anos para me meter nele? Será que ela já havia me dito algo interessante a ponto de me fazer pensar que outra mulher, por mais bonita que fosse e melhor trepasse, seria menos que ela? Provavelmente sim, mas começava a duvidar de mim, pois nada que ela tivesse me dito de interessante me vinha à tona. Ela iria acordar, e não seria tão bonita sem ter nada o que me dizer de interessante. Então jurei a mim mesmo que aquela seria a derradeira manhã: ou aquele diabo de mulher me explicava porque era tão bonita, ou ela teria que procurar outra cama para amanhecer sua beleza definitiva. Fui tomado por um alívio publicitário após proclamar meu ultimato. O sono dela jamais poderia desconfiar que era cúmplice de minha conspiração. Ronaldinho, limpou um, trombou com outro, tirou o goleiro da jogada com o olhar e gol, mais um gol brasileiro, meu povo.

Senti a cama se remexendo com ela. Estava acordada, já não era sem tempo. Escutei a porta do banheiro se mexendo e alguns ruídos primeiros do corpo dela. Passos caramelizados. Descarga. Torneira. Gargarejo. Passos de creme de leite. Ela surge na sala com o meu vinil do Hendrix numa das mãos. Pior, ela surge muito mais bonita do que eu havia julgado. Pede para eu colocar o disco na vitrola, tem uma música no lado B que eu gosto de te ver escutando com os olhos fechados. Então, senta-se ao meu lado e pergunta quanto estava o jogo.

Pus o disco na vitrola e desliguei o jogo na tevê. Cúmplice do corpo que ela recostava em mim, resolvi dar a ela mais uma semana de prazo. Não havia de ser tão complicado assim. Era uma sensação estranhamente boa vê-la de olhos fechados, quase dormindo, impossivelmente bonita enquanto a velha Stratocaster de Jimi extirpava de mim quaisquer desassossegos matinais. Fechei os olhos e sorri, eventualmente castelos feitos de areia escorriam para o mar.

 
Nossa, alguém ainda ainda vem aqui?

De qualquer modo, até o dia 28/11/2003 não contem muito com as palavras daqui. Estamos terminando monografia, e monografia dá trabalho.

Grato, parte da gerência.

ps: Não encham nosso saco. O CD novo do Strokes já saiu. Vão se divertir. E escrevam as suas próprias histórias.

sexta-feira, outubro 10, 2003
 
Aprendi cedo que a vida não tem explicação, ela simplesmente acontece. Coisas boas e coisas ruins acontecem, e nós acabamos por bem ou por mal nos habituando a elas. Não pensava em nada disso ali no meio da madrugada, caminhando pelo meio da rua só para aproveitar que não havia carros circulando àquela hora.

A cada passo em falso eu acelerava a minha queda, e sorria com isso. Cair, me estropiar todo, ouvir vértebras se partindo e costelas perfurando o tórax. Alguns passantes me apontariam o dedo, olha lá, o cara se fudeu. Eu nada poderia fazer, estaria caído. E eles teriam que preencher suas vidas passantes com a minha imagem desfocada.

Enquanto estava de pé, porém, apenas caminhava pelo meio da rua, rei. Caminhava e cantava, I'm a jumpin' jack flash, in fact it's a gas. Era o dono da rua, e sob certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que tinha a noite nublada me esperando fingindo dormir para que eu a enchesse de ofensas, tapas e pecados veniais antes de fechar os olhos e adormecer de fato. Nada ali impediria a minha queda, nada ali me impedia de ver sua fundura ou apreciar o quão sólido era o seu término.

Tive vontade de me deitar no meio da rua e apreciar a minha amante dentro de seus lençóis de algodão. Gostava de observá-la adormecida, mesmo que fosse de mentirinha, só para que eu ficasse a velar teu silêncio enquanto o desejo de ver todos os seus olhos conjugando o meu verbo irrigava meus capilares. A rua era minha, a noite também. Só me restava a queda, que não tardaria.

Assim que deitei-me, ela se fez de incomodada e abriu os olhos, seus olhos de lua. Não me mexi, não disse uma palavra. Ela me abraçou e mergulhou em mim e se fez puta entre ônibus que passavam ímpares e um ruído de música que às vezes chegava feito ondas em maré baixa. Eu apenas fiquei olhando a noite se divertir comigo. Sem ofensas, sem agressões, sem mais nada senão nós dois e as trevas do mundo.

Quando a noite finalmente virou-se para o lado e dormiu, já era dia. Meus olhos que ardiam de sono sabiam disso melhor que eu. Retornei à calçada e esperei pelo meu ônibus. A minha queda poderia esperar mais um pouco. Eu agora precisava dormir.

quarta-feira, outubro 01, 2003
 
Abaixo o Capuccino
Todo ano eu reclamo do festival. A época não me traz boas recordações desde sua primeira edição. Mas sempre estou lá, vendo os filmes. Não sou radical, como uma amiga que simplesmente detesta este stress e não vai a nenhum filme.
Há muitos filmes bons, é verdade. No festival vi Corra Lola Corra, Virgens Suicidas, 11 de Setembro, um documentário sobre a Motown, Paraíso, etc.. De fato alguns merecem um sacrifício de comprar antecipado
Mas ficar feito um louco atrás do Festival, se programando com antecedência, sem poder mudar de idéia porque já está com o ingresso comprado ou ter que vendê-lo dee qualquer maneira...tudo isso é tão comercial e babaca quanto bater ponto pra ver os filmes idiotas do Cinemark em fins de semana. Vendem este produto como algo cool mas no fim das contas, não passa de uma maneira alternaltiva de ser comercial. Passam ótimos filmes, mas entra ano sai ano permanece e aumenta o fluxo de pessoas comentando nos banheiros e filas dos cinemas lotados sobre a "bela fotografia do filme russo", a genial direção de arte do drama chinês, a sensibilidade do filme inglês... Filmes que na verdade são uma merda, mas que devem apresentar uma justificativa para terem valido a pena e o sujeito se sentir inserido no evento mais muderno do ano...