Gustavo & Thais

sábado, julho 19, 2003
 
Os Stones estão no palco e ela está linda no meio do turbilhão aos pés de Jagger. O concerto grátis na pista de Altamont promovido pelos meus eternos Stoned havia reunido mais de 100 mil cabeças diante do palco, corria o ano de 68, aqueles jovens reunidos em quase comunhão ali realmente acreditavam que eram revolucionários e mudariam o seu mundo com flores, baseados e guitarras. É algo bonito de se ver até hoje.

Por alguma razão sem o menor critério, os Stones confiaram aos Hell's Angels a incumbência de garantir a paz e harmonia durante os concertos (várias bandas além deles tocaram, inclusive The Jefferson Airplane - que teve seu vocalista agredido por um dos motoqueiros - e Grateful Dead), que pretendia ser uma segunda edição de Woodstock no Oeste do Grande Irmão. Não deu certo. Era muita gente (doida) dividindo o mesmo espaço e os anjinhos estacionavam suas máquinas no meio do público, e baixavam o cacete em quem encostasse nas Harleys.

Em meio a toda aquela insanidade ela surge na beira do palco quando os Stones evocam Sympathy For The Devil. Algo de estranho sempre acontece quando tocamos essa música, ironiza Jagger diante da turba tumultuosa. Eles estão caminhando ao seu apogeu a passos largos, a guitarra de Richards soa deliciosa a cada riff. Em suas mãos vê-se um pandeiro, ela observa o grupo e sorri, dançando na tela e a câmera que documentava os Stones a eterniza naqueles segundos. A guitarra de Richards passeia em seus cabelos e eu quero mergulhar no impossível em direção ao seu beijo de paz.

Diante muito ácido e muita confusão, Mick anuncia uma calminha para o público e os Angels pararem de brigar e os Stones tiram Under My Thumb da cartola. Que banda foda, Senhor. Não resolve, ao final da canção um Angel esfaqueia um garoto negro aos olhos da câmera e o mata. O horror. A edição mostra o corpo do garoto sendo levado embora, sua possível namorada aos prantos ainda na esperança de que ele sobrevivesse, sem saber da verdade. Aparece Jagger, e é quase inacreditável ver o rosto de menino dele em 68, ele está cansado (os produtores exigiram que os Stones observassem as partes filmadas da turnê durante semanas para a montagem do documentário) e é visível que ele se choca com o garoto sendo morto a seus pés. Dá pra sentir aquele menino envelhecendo em seus olhos exaustos.

Era apenas roquenrou, e eles gostavam disso. Está tudo documentado bonitinho em Gimme Shelter, inclusive a linda menina na cabeceira do palco. Essencial.

sexta-feira, julho 18, 2003
 
Uma das coisas mais bonitas que devem existir na internet. Stella escreve para seu pai viver mais. Escreve coisas simples como a vida é. Espero que o "Seu Geraldo" ainda tenha uma longa vida, Stella, uma longa vida.

quarta-feira, julho 16, 2003
 
Quando soaram os primeiros acordes da música, entenderam o quanto ainda precisavam um do outro aquela noite. Suas mãos se procuraram em meio à penumbra e observaram os casais dançando, e talvez alguns deles ainda estariam dançando mesmo dali a vinte e tantos anos. Aquelas mãos unidas e trêmulas conheciam seus calos e medos há bastante tempo. Tempo suficiente para que certas rusgas já pudessem ser vistas como gracejos à meia-luz após alguns goles de vinho do Porto, a bebida que melhor agradava a elas.

As mãos, aparentemente plenas, perguntavam-se caladas se ainda poderiam percorrer a sua cadência após tanto tempo, e agora advinham rugas inéditas ao seu tato de amantes de longo termo. Conheceriam o seu ritmo ainda? Como primos que se escondem do olhar dos pais e irmãos futriqueiros, reforçaram seu enlace instintivamente sem aviso prévio e agora o polegar dele acariava secretamente os pares que o embalavam. Suspiravam o casal vacilante que adentrava na dança, ele menor que ela ruborizada ao tentar disfarçar sua alegria maior que a timidez, arriscando passinhos infantis entre pares que giravam para não brigar ou simplesmente fugiam do mundo. Sorriram como se o tempo tivesse os feito voltar à sua primeira dança, e ele, trêmulo e firme como há mais de duas décadas atrás, repetiu a pergunta:

- Você dança comigo, amor?

Ela sorriu porque adorava como a voz dele soava tão sua ao dizer amor. Ele detestava sua pequena vacilação diante dela, e somente dela, pois que vinte e três anos e somente um ou dois segredos que nem valiam a pena ser compartilhados ainda secretos e a sua voz jamais saía firme e grave do jeito que ele planejava ao se declarar para ela. Ela jamais diria a ele que ter a certeza de ser a sua amada por meios tão anacrônicos era mais delicioso que a vez em que havia tido uma série de orgasmos múltiplos num dia de luxúria, telefone fora do gancho e um temporal que castigou a cidade, derrubou árvores e impossibilitou muitos engenheiros de chegarem ao seu local de trabalho. Seu olhar então sorriu para o amado sobriamente e sua mão pressionou a dele assertivamente.

“E com quem mais eu poderia dançar, meu bem?” Já haviam reiniciado seu tango e ela lhe sorriu ao pé de ouvido. Ela deixava que seu homem a conduzisse infinitamente por entre aquele labirinto de espelhos orgulhosa da devoção dele por uma mulher, por ela que só conseguiria dançar se fosse ele o par. As mãos unidas e elevadas por sobre toda a Terra bailavam em direção ao Éden. Assim como o casal que os havia feito suspirar memórias, aos poucos mergulhavam naquele tango e os demais pares no salão foram se transformando também em retratos, pequenos flashes que o tempo lhes havia subtraído. Passeavam através de seu primeito beijo que havia sido roubado dele numa fila de cinema, de uma noiva que quase não conseguia jurar amar aquele rapaz sorrindo feliz e sóbrio por uma súbita mudez e lágrimas, do mesmo casal dançando em vários ritmos, de uma seresta cantando um perdão desafinadamente embriagado por chegar do jogo tão tarde em casa e mesmo um cigarro suspeito que ela fumava ouvindo seus Beatles na varanda durante a madrugada desde seu primeiro namorado.

Ele a girou por entre milhares de beijos só para que ela desfilasse rainha o seu vestido novo e a filha mais nova percebesse como era linda aquela mulher que um dia deixou de ir trabalhar para, entre figuras que possuíam cabelos e piolhos demais, gravar seu amor no ombro esquerdo sob a forma de traços mandarins que ele beijava quase sem pecado algum toda noite antes do sono, sem saber que ela não dormia enquanto ele não o fizesse.

Dançavam ali após alguns anos apenas sentados entre canapés e por vezes bebidas demais apenas vendo outros casais rodopiando, porque achavam que em algum ponto daquele tango a orquestra havia perdido o tempo e jamais voltariam a combinar seus passos em comum. O beijo em mandariam havia se tornado um gesto mais mecânico do que carnal, pois que raramente sorriam em sua intimidade durante os últimos tempos. Felizmente o primogênto deles havia ingressado em alguma escola militar que proporcionara esse baile celebrando os trinta melhores alunos do ano, e suas mãos nunca deixaram de dormir abraçadas.

Quando o tango por fim terminou, a moça alta e ruborizada não mais disfarçava sua alegria ao ver um casal que continuava girando silenciosamente sua própria música unidos por mãos que se precisavam desde sempre.